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31.3.04

AYMÉ EM PORTUGUÊS DE PORTUGAL 

A ninfa e as serpentes, Lisboa, Estúdios Cor, 1965 (tradução e prefácio de João Pedro de Andrade).

A ninfa e a cobiça, Lisboa, Estúdios Cor, 1965 (tradução de João Pedro de Andrade).

Marcel Aymé (Contos), Coimbra, Atlântida, 1966 (selecção, tradução e prefácio de Judite D. Cortesão).

Contos do gato no poleiro, Lisboa, Teorema, 1989 (tradução de Manuela Torres).

Novos contos do gato no poleiro, Lisboa, Teorema, 1990 (tradução de Manuela Torres).

O Passa-Paredes, in revista Ficções, nº. 4, Lisboa, 2001 (tradução de José Lima).

Glosando António Nobre, apetece inquirir: onde estão os editores do meu país, que não editam esse impossível Marcel Aymé? Onde estão eles? Em que longínquas paragens estanciam? É que a obra do francês é bem ampla e rara, e exige publicação urgente. A lista que apresento acima (e que corrige um postal anterior), pela sua curta dimensão, é quase anedótica. E como se não bastasse a pequenez da mesma, a maior parte das traduções deixa muito a desejar. À excepção de João Pedro de Andrade e Judite Cortesão, o escritor Marcel Aymé ainda não teve, no nosso idioma, "intermediários" à altura. Nenhum deles consegue traduzir a magia enfeitiçante e o poder fabulador da sua prosa. Mas há pior. "Les contes du chat perché", por exemplo, foram vertidos (ou antes: subvertidos) para português sob o título de "Contos do gato no poleiro"! Ora, a expressão "chat perché" significa literalmente "pé-coxinho", pelo que a obra teria de ser crismada de "Contos de pé-coxinho". Manuela Torres, a tradutora, tropeçou no verbo "percher" e empoleirou o gato. Uma desgraça.

ESSE IMPOSSÍVEL MARCEL AYMÉ 

Quanto mais leio Marcel Aymé, mais o vou tendo na conta de escritor divertidíssimo, sem dúvida, mas, no fundo, extremamente sério.
Tudo quanto há de mais sério.
A sua obra é uma sátira enorme, uma enorme diatribe, um imenso libelo apontado à malignidade, à sordidez, às convenções, ridículas e absurdas da existência humana. É uma epopeia burlesca, portentosa de mordacidade, de sarcasmo, de sardonismo: vingadora caricatura da verdade, e veracidade, do quotidiano do homem. Com esta suprema singularidade, porém: a apreensão do quotidiano decorre, aí, sob a égide e na continuidade provocante do fantástico, catapultado, aliás, sem ponta de afectação, ou de artifício; antes, sim, com uma naturalidade de processos de tom a toda a prova.
Ainda mesmo quando narra o facto mais insólito, o caso mais surpreendente ou a ocorrência mais extraordinária que conceber se possa, jamais Marcel Aymé acusa o toque ou deixa transparecer a menor perplexidade.
Por muito inverosímil que o fenómeno relatado se apresente, o comportamento estilístico do autor não sofre nem conhece, lá por isso, "frisson" de maior. Bem ao contrário: o estilo de Marcel Aymé, muito a despeito do que há de intrigantemente fabuloso naquilo que nos conta, longe de ferir a mais leve nota de delírio, longe de percutir a mínima parcela de perturbação, queda-se vigilantemente impávido e sereno, como se tão-somente se tratasse de focar ângulos da realidade-padrão.
O escritor explora, assim e conduz às últimas consequências, com uma lógica, de resto, cerradíssima, as mil e uma possibilidades do inesperado e do absurdo, uma inflexão de sereníssima neutralidade, afinando mesmo pelo diapasão de uma soberaníssima "nonchalance", como se, porventura, as desconcertantes situações a que se reporta, e os seres prodigiosos aos quais dá vida, gravitassem na órbita da banalidade mais corriqueira e fossem a coisa mais trivial deste mundo.
Marcel Aymé detém, pois, a arte engenhosíssima de assumir, e também de fazer aceitar, com inteira placidez, o que há de menos crível e banal em matéria de invenção criadora mundividente: congraça o quotidiano e o irreal com tamanha "souplesse", e tal ductilidade de processos, que o fantástico quase resulta mais verídico que o quotidiano e este menos concebível que aquele.
O espectáculo, em geral bem pouco edificante, das relações mundanas correntes, é, para Marcel Aymé, um tentador convite à crítica dos agregados sociais (rurais ou urbanos), crítica que aliás exerce com penetrante intencionalidade e superior inconformismo, porém sem didactismos enfadonhos nem acusadas digressões moralizantes. Em tais circunstâncias, o ficcionista vale-se do concurso poderoso da sua imaginação para mais combativamente intervir. É por aí, de resto, que o apelo ao fantástico, ao insólito, e mesmo ao inverosímil as mais das vezes, se insinua, normalmente em termos de farsa "rabelaisiana", palpitante de comicidade, exultante de verve satírica. E o certo é que, sob o signo do fantasismo, por um lado, e do bom-humor, por outro, a abordagem e diagnose da realidade objectiva mais imediata, cujo controle Marcel Aymé jamais perde de vista ou larga de mão, resulta e redunda, afinal, por um lado mais pertinente, por outro muito mais cruelmente autenticada.
Procede, assim, o autor, a uma sábia inserção do irreal na moldura concreta do quotidiano. E tão bem accionada vem a ser essa irrupção do fantástico nos domínios do verismo mais terra-a-terra, que sucede só isto: espírito literário eminentemente imaginoso, Marcel Aymé revela-se, igualmente, e não obstante, escritor realista, e mesmo naturalista de vigorosa compleição. Aí reside, nisso mesmo consiste, a mágica varinha de condão da sua arte narrativa e o escândalo monstro da sua fascinante originalidade.
Mas, com toda a propriedade se pode dizer que Marcel Aymé, para além de ser dotado (um super-dotado) escritor, é também o que se chama um escritor datado. Haja em vista romance como "Uranus" e "Le Chemin des Ecoliers", novelas como "La Carte" e "Le Décret", peças de teatro como "La Tête des Autres", nos quais Aymé comete a suprema injúria de pensar as circunstâncias históricas da França de 40 e poucos, ao invés do que mandavam (e ainda mandam) as boas normas "intelligentzia resistencialista".
Em qualquer desses romances, como em qualquer dessas novelas, tem lugar, efectivamente, um depoimento frontal, meio amargo, meio pícaro-burlesco, e uma lúcida e desassombrada pintura da França da última guerra: a presença alemã no país; as atrocidades gratuitas de que são alvo elementos do corpo expedicionário do Reich; a lei do racionamento alimentar; o terror-ambiente, instaurado e fomentado pelas hostes (socialistas, paracomunistas ou hemimarxistas) da Resistência; a ignóbil atmosfera de delacção anti-colaborista, constituem-se matéria documental de primeira grandeza, cuja veracidade em nada é afectada pelo revestimento feérico (aquele toque de magia criadora) que Marcel Aymé imprime sempre às suas narrativas.
Quanto à peça teatral "La Tête des Autres", com ela se denuncia toda a hediondez da jurisprudência da depuração: o leitor vê-se transportado e reconduzido aos mais negros anos da vida francesa do século XX, à sangueira de 45, quando se conferia foros de justiça aos morticínios e se atribuía letra de lei, às iniquidades; quando criminosamente se confiava o destino dos homens ao cuidado de pelotões de fuzilamento; quando se elevava à dignidade de código de honra inatacável o princípio de perseguição e de massacre; quando, em suma, se chamava solenemente justiça ao que não passava de vingança, arbitrariamente administrada.

Rodrigo Emílio

3.3.04

MARCEL AYMÉ VISTO POR GOULART NOGUEIRA 

Morreu Marcel Aymé. Foi um dos maiores escritores franceses contemporâneos. O seu talento chispante, revulsivo, o escândalo da sua originalidade, o cruel optimismo da sua maneira, a desconcertante naturalidade do seu fantástico, a pureza moderna e clássica da sua linguagem, a sua inspiração e matéria encantada do instinto e da inteligência, o irrealismo realista e a ferocidade subtil do seu humor galgaram demasiado cedo no panorama das letras francesas, para que os donos da hora de hoje, a intelectual ditadura democratóide e esquerdista, pudessem desdenhá-lo, abafá-lo, ignorá-lo, cortar-lhe a carreira e impedir-lhe o renome. Pelo menos, sobre as tentativas de sonegação, ele ergueu-se, e dentre as empresas de afogamento, ele emergiu, triunfante. Cada obra sua foi sempre um testemunho e um libelo, uma entusiástica e entusiasmante obra de arte. Com a segurança de um atleta, lançou a irreverência e foi justiceiro; com o amor, a sensibilidade de um homem vivo e apaixonado pelos seres humanos e por toda a Natureza, cantou, em prosa tersa, límpida e palpitante, os sofrimentos, as alegrias, as pequenas fraquezas e as grandes forças, um mundo de observação e de imaginação. Inconformista, não cedeu aos ditadores da "inteligentzia" ou aos hipócritas trinadores dos belos sentimentos ideológicos. Escreveu violentas condenações do "salvador" De Gaulle, fez sangrar a depuração dos colaboracionistas, despedaçou a compostura dos fingimentos sociais. Classificaram-no como um escritor da direita. Marcel Aymé foi, sim, um intelectual honesto e um artista verdadeiramente criador. «Les Contes du Chat Perché», e «Le Passe-Muraille», romances como «La Jument Verte» e «Le Boeuf Clandestin», peças como «La Tête des Autres», «Clérambard» e «Les Oiseaux de Lune», críticas como «Travelingue» e «Le Confort Intellectuel», fundamentam o escritor numa presença exultante e combativa, exemplo para quem ama a verdade, refinamento para quem prega o espírito.

Goulart Nogueira (in «Agora», n.º 327, pág. 10, 21.10.1967)

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